Os terreiros também serviram para resgatar no negro escravizado a noção de família, tendo mães e pais de santo em suas referências
por Shirley Veloso – Agência Alagoas
(A líder espiritual Mãe Vera, atualmente, acolhe vinte pessoas que chegaram em situação de completa vulnerabilidade social – Foto: Ascom Semudh)
Com uma trajetória de luta árdua, o povo negro encontrou na religião uma forma de preservar a identidade cultural e os laços com a ancestralidade. E assim, as casas de religião de matriz africana foram e continuam sendo espaços de resistência. A Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, por meio da Superintendência de Direitos Humanos e Igualdade Racial, tem um projeto de mapeamento desses espaços, com o propósito de ampliar o conhecimento sobre as demandas e necessidades dessas comunidades.
Segundo a secretária de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, Claudia Simões, o mapeamento das casas de religião de matriz africana vai possibilitar a construção de políticas públicas cada vez mais eficientes e eficazes.
Para superintendente de Direitos Humanos e Igualdade Racial, Rita Mendonça, as religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito e discriminação. Por isso, várias ainda funcionam na informalidade, o que tem impacto direto na elaboração de políticas públicas de promoção de direitos e garantia de dignidade.
Umas das primeiras funções do Candomblé foi devolver ao negro a noção de família, já que por meio dos terreiros, a identidade familiar foi recuperada. A Casa de Resistência Abassá de Angola, localizada no Conjunto Otacílio de Holanda, próximo ao terminal de ônibus do Eustáquio Gomes, é um desses pontos de resistência até os dias atuais. A casa possui um espaço, aonde a líder espiritual Mãe Vera, atualmente, acolhe vinte pessoas que chegaram em situação de completa vulnerabilidade social.
Em um único ambiente, com uma divisória de cortina para o banheiro, Mãe Vera dispôs dez camas, onde no momento, dormem vinte pessoas. São homens, mulheres e mães com suas crianças. Todas vivendo fraternalmente e tendo em comum a situação de vulnerabilidade social.
A casa de acolhimento de Mãe Vera, que recebeu o título de Mestra de Cultura, sobrevive por meio de apresentações culturais do Grupo de Maracatu Raízes da Tradição e também com doações da população e de pequenos comerciantes da região.
As mulheres têm papel de destaque nas religiões afro-brasileiras e essa liderança vem do período pós-escravidão, quando as primeiras casas que surgiram no Brasil eram conduzidas por lideranças femininas. Hoje, a maioria dessas casas continua tendo mulheres à frente.
Filha de uma indígena alagoana e de um africano de Moçambique, Veronildes Rodrigues da Silva, conhecida como Mãe Vera, resistiu o que pode para não assumir o que ela denomina de responsabilidade com a religião de matriz africana.
Mãe Vera conta que viveu sua infância na Praça da Maravilha, no Poço, e que seu pai chegou ao Brasil fugindo da escravidão no Continente Africano. “Percebi a minha mediunidade, quando tinha nove anos”. Mas, ela diz que era muito menina para assumir a responsabilidade, e que muitas vezes sua mãe a chamava ao compromisso.
A mãe era a indígena Lindinalva da Silva Santos que realizava sessões espíritas em sua residência, recebendo muitas pessoas em busca de respostas para suas aflições. “A minha infância não foi de brincadeiras, e eu sempre perguntava: todos vão brincar e eu vou ficar aqui?”. Afirma Mãe Vera, na época com nove anos.
A líder espiritual disse que a adolescência foi chegando e com ela o namoro e o gosto por festas. “O meu compromisso era sair das festas no Sesc e ir atender ao pessoal que aguardava na minha casa. Determinado dia comecei a namorar um rapaz belíssimo e ao ser beijada por ele, acertei-lhe um soco no nariz. Era a entidade brava, pois eu havia priorizado os meus desejos e deixado as obrigações de lado”.
Nesse momento, Mãe Vera disse que começou a perceber que não poderia negligenciar com a religião. Mas, afirmou que somente passou a conhecer melhor sua missão, quando preparava-se para sua festa de quinze anos e a mandaram chamar à casa de seu pai, já separado da mãe Lindinalva, pois ele estava muito doente.
“Ao chegar lá, fui recebida pela entidade que acompanhava meu pai, me dizendo que eu precisava cuidar do povo, de casa aberta. Que eu teria dois filhos biológicos, mas muitos outros que não seriam de barriga. A promessa se cumpriu. Abraço todos na nossa casa. Encaminho, aconselho, cuido materialmente e espiritualmente”.
Entre os trabalhos espíritas realizados por Mãe Vera estão, consultas, limpezas espirituais, jogo de búzios e de cartas. As sessões espíritas ou reuniões mediúnicas da Casa Abassá de Angola acontecem aos domingos, a partir das 15h30.
Prestes a completar 59 anos, em 4 de março, a Mãe de Santo Vera tem oito netos e irá ganhar a primeira bisneta. Estudou até a 8ª série, hoje 9º ano. Já foi ambulante, manicure e aprendeu desde os vinte anos de idade o ofício de parteira, além das netas, disse que já perdeu as contas de quantas crianças ajudou a trazer ao mundo.
As doações para a Casa de Resistência Abassá de Angola podem ser feitas no barracão de Mãe Vera, que fica no Conjunto Otacílio de Holanda, Quadra K, por trás do terminal de ônibus do Eustáquio Gomes.